Opinião Jurídica
Nunca as especulações acerca da adesão do Brasil à Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), sigla em inglês, e o esforço para que tal aconteça, foram tão evidentes quanto agora. Ao que tudo indica, não há qualquer impedimento por parte da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e do governo para a adesão, que tem sido extremamente recomendada por especialistas.
Enquanto crescem as especulações acerca da adesão, paira no ar uma questão: "o que muda na prática?". A resposta imediata a essa pergunta é "muita coisa".
Haverá uma especialização no regime de obrigações, complementando o atual regime do Código Civil; a inserção de novos conceitos legais e a existência de um corpo normativo criado especialmente para se adaptar à realidade do comércio internacional.
Podemos abordar, ainda que brevemente, algumas das novidades abarcadas pela convenção.
Tomamos, como exemplo, o prazo para exercer os direitos advindos dos vícios da mercadoria. O Código Civil, ao facultar ao comprador a rejeição dos bens ou o abatimento do preço em caso de vício da mercadoria, determina que tais direitos, com relação aos bens móveis, decaiam em 30 dias a partir da entrega, ou da descoberta do defeito nos primeiros 180 dias da posse do bem nos casos de vícios ocultos.
A CISG, por sua vez, estabelece que o comprador deve examinar os bens ou fazer com que terceiros o examinem, no período de tempo mais breve possível, de acordo com as circunstâncias. Se após esse exame, o comprador detectar, ou deveria em condições normais ter detectado, qualquer defeito na mercadoria, deverá ele notificar imediatamente, e de forma clara, o vendedor do defeito encontrado, permitindo, assim, que ele tome as medidas necessárias para contrapor-se à reclamação e, eventualmente, remediar sua performance. Se o comprador negligenciar na obrigação de notificar o vendedor, o seu direito de exercer as faculdades previstas na CISG, com relação aos vícios do bem, decai imediatamente. O dever de pronto exame dos bens e informação sobre os defeitos, inexistente no regime atual, vem atender à dinâmica do comércio internacional.
A decisão da Cour d ' Appel de Paris, em janeiro de 2001, é exemplo da aplicação do regime decadencial da CISG. No caso, um fornecedor de materiais para a companhia que efetuava a manutenção da Torre Eiffel concluiu, com uma empresa alemã, a compra de cabos de sustentação para os elevadores da torre. Ao receber a mercadoria, o fornecedor observou que os cabos estavam enrolados em carretéis maiores do que o devido, rearranjando os cabos em carretéis menores. No entanto, não houve notificação ao vendedor alemão. Posteriormente, os cabos foram considerados não conformes com o contrato pela companhia de manutenção. Sendo assim, o fornecedor francês respondeu por perdas e danos sem direito de acionar a vendedora alemã, uma vez que falhou no dever de notificação, operando a decadência.
Outra novidade, ainda com relação às falhas de performance contratual, é o fato da CISG oferecer diversos remédios ao inadimplemento, como o aumento do prazo para performance, transação substituta ou diminuição no preço, estabelecendo o afastamento do contrato como o último recurso. A intenção da convenção é a preservação dos contratos e das relações comerciais internacionais, uma vez que tais relações são complexas e, em geral, não se resumem somente à compra e venda, como seria em um contrato civil, mas também a uma busca, por conquista do mercado, geração de negócios e formação de parcerias. O afastamento total do contrato, com o restabelecimento do status quo ante só é permitido em situações extremas.
Uma das poucas ocasiões na qual é possível o afastamento das obrigações contratuais é na ocorrência de uma violação essencial, ou em inglês "fundamental breach". Inexistente no direito brasileiro, mas presente em ordenamentos nacionais como o holandês e o alemão, bem como em diplomas internacionais como os princípios Unidroit em contratos comerciais e os princípios do direito contratual europeu, a violação essencial é o parâmetro para determinar se a inadimplência é grave o suficiente para levar à ruptura da relação contratual, que tem como cerne o interesse das partes no contrato. Por exemplo, se um comprador adquire fogos para a festa de Réveillon e os bens são entregues atrasados, chegando somente no dia 1º de janeiro, sua expectativa no contrato, usar os fogos na celebração, é frustrada, o que permite, a priori, que o comprador devolva os bens, exija o reembolso do preço pago, e demande perdas e danos, se for o caso, pois há aqui uma violação essencial das obrigações. Uma opção é determinar contratualmente em quais situações ocorreria a referida violação essencial, preenchendo a lacuna da lei.
Como vemos, a adesão trará uma modernização no regime jurídico brasileiro da compra e venda internacional, podendo beneficiar o setor privado. Cabe lembrar que não obstante a CISG contribuir para um avanço nas relações internacionais, a sua incidência e aplicação sujeita-se à vontade das partes contratantes, pois prevê seu afastamento desde que expressamente contratado.
A atenção às possíveis mudanças será fator decisivo no momento de definir quais participantes do comércio internacional sairão na frente. Familiarizar-se com a matéria desde já é, portanto, essencial.
Cláudio Mattos é advogado do Demarest e Almeida Advogados
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
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