Alexandre Lira de Oliveira Omar Rached [1]
Nesse mês de setembro de 2010 experimentamos uma situação inusitada, anacrônica e lamentável em nosso ordenamento jurídico aduaneiro. Trata-se de uma interpretação antijurídica, equivocada, que foi desenvolvida pela 7ª Região Fiscal da Receita Federal do Brasil e reproduzida por outras alfândegas, inclusive em outras regiões fiscais como a 8ª Região, que jurisdiciona o Estado de São Paulo.
Consiste a malsinada construção na tentativa de aplicar às importações cursadas pelo modal aéreo de empresas habilitadas à Linha Azul e ao Recof a pena capital do comércio exterior, que é a pena de perdimento, pela aplicação de um dispositivo de uma instrução normativa que não é aplicável a essas operações, o art. 16 da Instrução Normativa SRF 102/94.
É inusitada e anacrônica a situação pois causa espanto que depois de muitos anos de aplicação dos procedimentos conforme determinados pela legislação venha a mesma a ser questionada tão fortemente. E é extremamente lamentável a ocorrência.
Depois de tantos esforços por parte da Receita Federal para a criação de regimes aduaneiros que modernizem nossa aduana e estimulem o investimento em plataformas de exportação no Brasil e também pelos importadores para se adequar às exigências, com implantação controles internos que requerem pesados investimentos, é consternador verificar que legítimas operações cursadas por respeitáveis empresas possam estar sujeitas aos desmandos de qualquer Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil.
Como membro da Organização Mundial das Aduanas nos protocolos de facilitação de comércio internacional, a aduana brasileira comprometeu-se a buscar parceria com o setor privado na construção das condições para desenvolvimento do comércio exterior. Toda parceria consiste primeiramente na mútua confiança. Como pode haver confiança do setor privado na Receita Federal do Brasil quando sofismas construídos por agentes públicos com exclusivo intuito de prejudicar o particular são propagados e se tornam populares na alfândegas brasileiras?
Na lógica formal, sofisma é um silogismo cuja conclusão é formalmente válida mas não verdadeira, pela presença de uma premissa viciada. O caso que está sendo criticado consiste na aplicação da pena de perdimento – estipulada pela Instrução Normativa SRF 102/94 – para os processos aéreos de importação de empresas do Linha Azul e Recof, que não são destinados a armazenamento, quando as mercadorias permaneçam no pátio por mais de vinte e quatro horas, conforme determina o artigo 16 da IN:
Art. 16. A carga cujo tratamento imediato não implique destinação para armazenamento deverá permanecer sob controle aduaneiro, em área própria, previamente designada pelo chefe da unidade local da SRF, sob a responsabilidade do transportador ou do desconsolidador de carga.
§ 1º A permanência dessa carga nesse local não poderá exceder vinte e quatro horas da chegada do veículo.
§ 3º Nos casos em que o tratamento indicado seja pátio, o não cumprimento do prazo previsto no parágrafo 1º deste artigo pelo importador com vistas ao desembaraço implicará na aplicação da penalidade prevista no parágrafo único do art. 24 deste Ato.
A penalidade estipulada pelo art. 24 é a pena de perdimento, pela hipótese de aplicação "em operação de carga ou já carregada em qualquer veículo ou dele descarregada ou em descarga, sem ordem, despacho ou licença, por escrito, da autoridade aduaneira ou não cumprimento de outra formalidade essencial estabelecida em texto normativo".
Mesmo no caso da carga do importador habilitado à Linha Azul ou Recof permanecer no pátio por mais de vinte quatro horas, o que pode ocorrer principalmente no caso de embarques fracionados, a hipótese de aplicação de pena de perdimento estabelecida pela Instrução Normativa não lhes é aplicável.
A hipótese normativa insculpida no artigo 16 da Instrução Normativa, cuja consequência jurídica é a pena de perdimento, é aplicável à carga que deverá permanecer sob controle aduaneiro sob a responsabilidade do transportador ou do desconsolidador de carga.
No caso das importações cursadas por empresas habilitadas à Linha Azul e ao Recof [2], embora haja o tratamento de "carga não destinada a armazenamento" no Mantra, o restante do tratamento aduaneiro conferido à carga é diferente. Conforme o artigo 16 da IN SRF 476/04, a carga permanece sob a custódia do depositário – que nessa situação é a Infraero:
Art. 16. A mercadoria importada por pessoa jurídica habilitada à Linha Azul, que proceda diretamente do exterior, terá tratamento de armazenamento prioritário, permanecendo sob custódia do depositário até ser submetida a despacho aduaneiro.
Nessa situação de armazenamento prioritário, que é uma das principais vantagens do Linha Azul, a carga mesmo sem armazenamento está sob a custódia da Infraero, não havendo como infirmar a aplicação da pena de perdimento prevista pelo artigo 16 da IN SRF 102/94, que reporta-se expressamente a situações em que a carga esteja sob a responsabilidade do transportador ou do desconsolidador. Inclusive, o próprio artigo 16 da IN SRF 102/94, em seu § 4º, autoriza que o Auditor Fiscal determine o armazenamento da carga, o que consiste em confiá-la sob a custódia da Infraero, algo que já acontece prioritariamente no caso do Linha Azul:
§ 4º O disposto neste artigo não impede que, a qualquer tempo, a fiscalização aduaneira determine o armazenamento da carga ou proceda à verificação de seu conteúdo.
Essa seria uma hipótese de não caracterização do perdimento pela providência, que no caso do Linha Azul e Recof já está cumprida, que é remeter a carga à custódia da Infraero. É realmente estarrecedora a aplicação do perdimento nesse caso.
A Instrução Normativa SRF 476 cumpre nessa relação o papel de "norma especial" aos casos do Linha Azul e Recof, sendo por isso a norma aplicável à situação, em detrimento da Instrução Normativa SRF 102, que seria nesse caso a "norma geral" aplicável a outros casos [3]. Esta afirmação encontra respaldo no princípio de hermenêutica [4] jurídica lex specialis derogat legi generali [5].
Não é necessário ser um advogado aduaneirista para fazer essa análise, pois o conceito de aplicação da "norma especial" aos casos a que se refere é conteúdo da cadeira de Introdução ao Estudo do Direito, situada no primeiro semestre do curso de Ciências Jurídicas. Contudo, necessário é que a Receita Federal do Brasil possua controles que impeçam que seus agentes inadvertidamente veiculem posições e construções antijurídicas, que não encontram abrigo no ordenamento normativo brasileiro. Uma sugestão é que apenas aqueles como formação jurídica pudessem formular esses "pareceres".
Fosse o critério do setor privado e do Ministério Público Federal tão rigoroso como é o da própria Receita Federal do Brasil para buscar a punição a terceiros, por situações como a relatada nesse artigo seriam movidos processos buscando a reparação dos ilícitos que podem decorrer da imposição de exigências ilegais em detrimento do patrimônio de particular, como o abuso de poder e autoridade.
Uma vez esclarecida a incidência das normas jurídicas que regem a relação audaneira, espera-se que a situação conflitiva possa ser resolvida rapidamente, pela leitura das normas de regência, que tornam clara a inaplicabilidade da punição aventada. Que assim possam as empresas operar agilmente em comércio exterior, o que é sinal de desenvolvimento de um país.
[1] Advogado especializado em Direito Internacional e Aduaneiro. Mestre em Logística Internacional.
[2] IN RFB 757/07 - Art. 22. As importações ao amparo do regime promovidas por pessoa jurídica habilitada estarão sujeitas ao tratamento de Linha Azul, observados os procedimentos e condições previstos na legislação específica para sua habilitação e operação.
[3] A pena de perdimento estabelecida pelo art. 16 da IN SRF 102/94 é por si só de legalidade tão questionável que entendemos que não deveria ser aplicada a nenhuma situação, mas sim revogada, por distante da realidade atual do comércio exterior e do próprio Mantra.
[4] Interpretação.
[5] Norma especial sobrepõe norma geral
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